24 de março de 2008

O Concreto #2

O concreto viaduto

Que dirá o maldito
no meu luto
viaduto de ilusões que
me cercam e me cobrem e
engolem a nação-mundo
que dirá o bastardo do mundo
no esquecido do não dito
quem esquece e não
se apressa pra fazer tudo
tudo aquilo que foi dito
de uma boca
dum maldito de não dito
que não lembra o que disse que
foi dito para os outros
que hoje olham o viaduto
sem carro ônibus bicicleta
os cobriu o viaduto
viaduto vida e casa
que de casa não tem nada
os que tem vida no
viaduto de noite cobertos
no viaduto debaixo
do viaduto
da guerra fome morte miséria
que a ilusão dos
filhos-bastardos-do-mundo criaram
colocou pros filhos-da-miséria
a ilusão que não existe
guerra-fome-morte-miséria
pra além do que conhecem
ou que só existe
pra além do que eles conhecem
miséria que só é minha
miséria que não é minha
miséria que não é de ninguém
mas que é de todo mundo
miséria pra todo (o) mundo.

(Trem Expresso Leste da CPTM, São Paulo, Outubro de 2006)

O Concreto #1

O concreto Augusto de Campos concreto

Luxo-lixo-luxo
se não tem lixo não tem
luxo não tem lixo
precisa de lixo pra ter luxo
pra ter lixo tem o luxo
pra mais luxo vai mais lixo vai
mais lixo pra mais luxo que
só cresce quando o lixo cresce
mais luxo mais lixo mais
luxo do lixo que
vem dos que não tem luxo
os que tem mandam mais lixo
pra miséria do lixo do
mundo gente-lixo-luxo-lixo
para o luxo-gente-lixo.

(Trem Expresso Leste da CPTM, São Paulo, Outubro de 2006)

Crise de consciência

Algum grande problema existe. Alguma confusão muito grande aconteceu. Tem alguma coisa que está muito errada. Tem algo que está realmente fora do lugar. A incerteza não quer mais dar mais nenhum espaço para as certezas.

A verdade não tem mais força. As verdades perderam o sentido. A sinceridade perdeu toda a sua razão de ser. Mentir parece ter mais significado. As mentiras parecem fazer mais sentido. A mentira parece ser mais compreensível e aceitável. Eu já não entendo mais nada. Já não sei como me fazer entender. Não sei mais quando falar ou não, como falar ou não, o que falar ou não. O óbvio perdeu a lógica. A lógica nunca mais foi, nunca mais será óbvia, não é mais pressuposta, deixou de ser subentendida.

Eu não tenho pressa, mas também não sei mais esperar. Não sei o que fazer, mas também não consigo refletir e premeditar o que fazer. Não consigo ficar parada, mas também não sei em que direção ir. Estou em constante dúvida, e ao mesmo tempo minha mente está em branco, com um imenso e desesperador vazio. Quero reagir, mas não me arrisco a agir em falso.

Quando eu quis parar e refletir, todos preferiam agir pra repensar depois. Quando eu quis agir, todos acharam que era necessário mais algumas horas pensando. Quando eu ouvi e compreendi, repetiram e insistiam várias vezes, mas quando eu não ouvi, ninguém quis pensar em porque eu não entendi. Contrariei em guardar o que queriam expor, tentaram esconder tudo aquilo que eu quis mostrar. Teimei em não concordar e aceitar passiva e integralmente o que ainda desconhecia, e insistiram em tentar me convencer que eram verdades as mentiras que eu já conhecia bem. A latente polarização e o constante avesso estão começando a me cansar.

Eu não consigo entender o porquê de mentir sobre o que você nunca concordou nem aceitou. Ninguém quis entender porquê eu não consegui mentir enquanto mentiam pra mim. Não consigo entender porque tantos tacharam a minha sinceridade de mentira, e depois que menti acharam que enfim fui sincera. Não entendo como as outras pessoas conseguem encontrar na falsidade uma realidade mais plausível e verdadeira do que na sinceridade. Tamanha constância na contrariedade também está me cansando.

Eu me sinto errada. Sinto o mundo que me rodeia como errado. Não sei se sou uma cotia, um quati, um guaxinim, uma onça, uma jaguatirica... parece que sou uma pessoa por fora, um ser humano, porém por dentro sendo qualquer outro tipo de bicho, algum outro animal que haveria de ter nascido desprovido do dom da fala e de cordas vocais.

(Cidade Universitária, São Paulo, Outubro de 2007)